""Onde o país é mesmo profundo, a VISÃO acompanhou a campanha de Xanana Gusmão. Uma viagem que foi um bilhete de ida e de volta aos tempos da resistência, com galos coxos e lagartos cantantes, em busca de um sonho representando por um foguetão. Chegará o carisma do comandante para ganhar as eleições?
Henrique Botequilha 28 Jun. 2007
Se pudesse, Xanana Gusmão visitaria todos cemitérios que guardam os mártires de Timor-Leste. Em Tumim: o ex-guerrilheiro contempla os túmulos de 74 pessoas massacradas, em 1999, pela milícia local - Sacunar (escorpião) -, que se espraiam pelo morro em socalcos, nos prados de altitude de Oecusse-Ambeno. «Ajudar as famílias destas vítimas é dar um sentido ao seu sacrifício.» O enclave, no lado ocidental da ilha, está cercado pela enorme Indonésia, que se vislumbra na outra encosta do vale. Mas esse já não é o inimigo. Recordar estes mortos é gritar pelos vivos, em nome de uma nova causa, escrita em letra de forma no slogan «libertada a pátria, libertemos o povo.» Esta é a crónica da campanha de um candidato ao poder que um dia jurou aos camaradas de luta, muitos deles entretanto caídos, a rejeição do exercício de cargos políticos. Um mandato presidencial depois, ele está na corrida para ser o próximo primeiro-ministro de Timor-Leste, numa «luta de galos» com Mari Alkatiri, líder do partido histórico, Fretilin. Jurou também que, expulso o ocupante, o sangue não voltaria a correr neste território de destinos fatais. Kay Rala Xanana Gusmão, 61 anos, presidente do recém-criado CNRT (Congresso Nacional da Reconstrução Timorense), não conseguiu manter nenhuma das promessas. Viqueque, 3 de Junho, Lorosa'e (Leste): Afonso Kudalai, segurança civil da sua caravana partidária, é abatido a tiro, num homicídio à margem da campanha, embora tenha ganho relevância política já que o suspeito do crime é um polícia apoiante da Fretilin. Maubara, Loromonu (Oeste), dia 19: o candidato distribui pétalas de flores por 20 campas viradas para o mar turquesa e abraça Florindo de Jesus Brites, 25 anos, a quem falta um pedaço do antebraço. As suas costas estão vincadas por uma cicatriz brutal: «Golpe de samurai (sabre).» A imagem do mutilado, em resultado de um massacre da milícia Aitarak (espinho), no pré-referendo de 1999, já fez a capa do diário Jakarta Post, e foi alvo de atenção da Comissão Verdade e Amizade, composta por representantes timorenses e indonésios. Internacionalizou-se a história de um homem que continua desempregado. Ele conhece, uma por uma, as vítimas que repousam sob os seus pés, debaixo da terra vermelha, entre elas um irmão. Seis anos após a extinção do Conselho Nacional da Resistência Timorense (antiga coligação dos partidos nacionalistas), a sigla CNRT voltou ao país. Perante os mortos, Xanana compromete-se com um novo juramento: «Servir o povo e dar atenção aos que fizeram a luta.»As campas e a o mutilado, afirma, «são a ligação entre o velho CNRT e o novo.»
Mobilização geral
Passaram-se cinco anos sobre a independência e o povo continua miserável, as infra-estruturas não se vêem, as estradas mantêm-se esburacadas, há 20 mil deslocados internos, o investimento privado é pouco mais do que nulo, o país está de novo «ocupado» por militares internacionais, em resultado de uma crise política - entre o Governo Fretilin e o Presidente Xanana -, apimentada por 600 homens que desertaram das forças armadas em protesto contra o Executivo: os peticionários. A violência saiu outra vez à rua e o sangue voltou a correr. O tempo congelou na meia-ilha tropical. As legislativas, de 30 de Junho podem marcar o momento que separa um estado viável e um estado falhado. Jogam-se também nas urnas 20 anos de atritos entre o comandante guerrilheiro e o partido que esteve historicamente associado à resistência. Na ressaca da crise, o Presidente que não o queria ser achou que tinha de voltar ao comando do povo, num lugar em que pudesse, efectivamente, mandar: «Dantes, pedi às pessoas sacrifícios, agora vou tomar conta delas», afirmou numa entrevista exclusiva, publicada na última edição da VISÃO (disponível integralmente na página online da revista). As cadeiras dançaram. O independente Ramos-Horta, que chefiou o Governo, em substituição de Mari Alkatiri, no segundo Governo Constitucional (em cinco anos, já houve três), transitou para o Palácio das Cinzas (Presidência). E o ex-chefe de Estado corre pelo poder executivo - o guerrilheiro despertou. Maliana, capital do distrito de Bobonaro: numa sala branca, Xanana senta-se numa cadeira de plástico, aquecendo a voz para o comício que não tarda. Está lá Mahuno, o comandante das Falintil (braço armado da resistência), que sucedeu a Xanana, após a sua prisão em 1992, e que foi também capturado nos meses seguintes. Apesar de um AVC, que lhe afecta a fala e a coordenação motora, ocupa um dos lugares cimeiros da lista do CNRT. Estão lá Bissoi e Bilou, duas guerrilheiras que fizeram o pleno de 24 anos na montanha. Veteranos do mato ou actores da duplicidade timorense - trabalhando com o inimigo, atraiçoando-o pelas costas - e activistas na diáspora. Cada rosto, um passado, cada passado uma matriz comum: a resistência de novo, às ordens do seu comandante: o maun bo'ot (irmão maior). «Temos gente da luta armada, da rede clandestina, da frente diplomática (os três ramos da Resistência), só podemos ganhar», afirma um apoiante. «A não ser que matem o katuas (velhote venerável)» Onde a esperança média de vida é de 55 anos, não se estranha o tratamento? Está lá ainda a Fretilin-Mudança, com a sua legião de ex-governantes, que disputa a liderança do partido contra Mari Alkatiri e que, nestas eleições, se enfiou debaixo do guarda-chuva do CNRT, afrontando «os abusos de poder« do Governo: «Num país pós-conflito teria sido importante incluir a oposição», afirma o coordenador desta facção partidária e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, José Luís Guterres. «Mas [o Executivo] não ouviu ninguém, não conseguiu resolver a crise das forças de defesa e por causa disso teve de chamar tropas estrangeiras, pondo em causa a própria soberania nacional» Este grupo acredita que, depois de a Fretilin ter perdido quase 30% de votos, entre as legislativas de 2001 e a primeira volta das presidenciais, há um mês e meio, será responsável por um autêntico desastre nas próximas legislativas, altura em que fará o cerco final à liderança de Alkatiri. Quanto a Xanana, o motor auxiliar desta luta interna, exibe um optimismo em crescendo: «Não espero menos do que 51 por cento»
O presságio do galo coxo
O comandante que voltou a sê-lo nunca perdeu certas rotinas adquiridas no mato. Ainda o sol não se levantou e Xanana já está a pé. Poucas horas atrás, teve de esclarecer, naquela quintal de Maubara, uma mulher que pretendia saber se ele só queria os votos do povo. Bebe um café e fuma o primeiro cigarro, que lhe agrava a tosse. Toma um xarope e um rebuçado para a voz, que enfraquece a cada dia, e, à medida que os colegas de partido se levantam, começa o recital de histórias. Mahuno ri como um pirata. Na longa jornada de campanha, que começou no fim de Maio, na ponta Leste, Xanana vai dormindo em casas de apoiantes, tão pobres como pobre é Timor, humildes mas sempre dignas nas suas paredes de cores sumidas, sofás coçados e mobiliário velho. A electricidade vai falhando, a água acumula-se em recipientes baços, o banho toma-se com uma concha pela cabeça abaixo. Ninguém se queixa - são veteranos, acostumaram-se a muito pior. Acompanhar Xanana em campanha é também mergulhar nas profundezas de Timor-Leste. Antes de cada comício, o candidato é vestido com preparos tradicionais, dando um significado visual ao «liurai dos liurais« (régulos). À chegada a cada localidade, os anciãos cantam o hamulak, um ritual de boas-vindas para os notáveis, e uma criança envolve o seu pescoço com um tais (pano timorense). Estão sempre presentes os lianain, os velhos que comunicam com os espíritos, e toda a sorte de coreografias: meninas ululantes em Pune, em Oecusse-Ambeno, dançarinos que chocalham trajes em moedas centenárias, em Pasabe, no mesmo distrito, cânticos ancestrais em Ataúro. Tapetes de flores, efeitos em palapa - orgias de cor. Nitibe, ainda em Oecusse, Xanana discursa para uma multidão de camponeses, na alta montanha que perfila os confins do enclave. Um gondoeiro abriga todo o comício e os políticos acomodam-se sobre as raízes desta árvore colossal. A copa é tão frondosa que ensombra toda a assistência. No tronco, há caveiras de animais abatidos em rituais de sacrifício, cujo sangue tingiu de vermelho as pedras na base. Este é o Timor místico que não se revela apenas nas terras do fim do mundo. Ele também influencia campanhas e testa a racionalidade das elites. Na crise de há um ano, reuniões em baixa voz eram conduzidas por um toké (um lagarto cantante). Se ele cantava, era a confirmação de uma boa ideia. Se ficava mudo, mudava-se a estratégia. «Que país é este, entregue à voz de um toké?«, questionava um actual apoiante do CNRT, que não quer aparecer como alguém metido em crenças no tempo dos seus avós. Em Laleia, terra natal do ex-guerrilheiro, um galo velho e coxo desceu a montanha depois de prolongada ausência: bom presságio. Alguns dos seus inimigos, diz o mesmo apoiante, acreditam que os espíritos dos antepassados confiaram em Xanana a missão de guiar o povo: «Isso mete-lhes medo, muito medo».
O sonho que vai de foguetão
Em palanques improvisados, nos alpendres dos mercados ou sob telas do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, Xanana projecta a voz e o carisma. O CNRT pôs a logística a funcionar e camiões a transportar gente em todos os distritos. As crianças descalças ocupam as primeiras linhas, os rapazes efusivos estão na segunda, junto de velhos que queimam as gengivas com a bua (fruto de palmeira mascado com cal). Xanana e Mahuno também a provam. O material de campanha compõe o espaço e a mensagem - faixas representando o guerrilheiro e o estadista; cartazes futuristas, partilhando o sonho na forma de estruturas aeroportuárias, arranha-céus ou o delírio criativo (que não terá passado no crivo do chefe), de caças de combate e foguetões. O culto do homem está em toda a parte. Mas Xanana está noutra. Em palco, possui uma energia diabólica. Irrequieto, transmite em tétum a ira contra o Executivo da Fretilin. Imita os ministros, cobrindo-os de ridículo, ressona para ilustrar a ineficiência dos deputados, finge que enche um balão para falar de um poder que «enche, enche, enche e, depois? bum! «Está imparável: «Se o Governo não desenvolve, sai!!!! Não serve o povo, sai! É corrupto, sai!» A assistência, em cada canto do país, concorda em uníssono: «Sai!» A sequência do «sai!», proferida num grito de revolta, incendeia qualquer público. Nunca falha. Excepto em Oecusse, por causa de uma traição linguística. No dialecto local (vaiqueno), sair diz-se «poe». Parece «põe». O orador pensa que o homem que faz a tradução está a sabotar o discurso. Até que, desfeito o mal-entendido, se desfaz em riso e remata, triunfal: «O Governo não faz nada, poe!» Uma coincidência tão tramada como ali perto existir uma terra com o nome de Xanane. Entre o festival Xanana, a lavagem de roupa suja da Fretilin contra a «Fretilin radical», sobra ainda Anito Matos, humorista e cantor, que faz Timor rir há mais de 20 anos e aquece os corações com as suas baladas românticas ou canções populares. Em campanha, ele põe o povo a dançar, embalado pelos acordes pesados da banda de punkrock Smith Brothers, de Lahane. O artista está orgulhoso: «Esta gente não tem muito com que se divertir» Em Pune, a farra estende-se até ao raiar do sol, com muita música e tuasabo (aguardente) derramado. Mas Xanana prefere trocar impressões com veteranos da rede clandestina.
'Está no papo'
Xanana, «o Deus vivo», católico - não há comício nem ataque ao almoço que não seja precedido por uma oração - é também um mortal. Há muito poder de fogo à solta em Timor, e o polémico Railós (o homem que denunciou a recepção de armas fornecidas pelo Governo para eliminar adversários políticos) lembra isso mesmo nas iniciativas do partido em Liquiçá. A polícia, com espingardas automáticas, segue o candidato para cada lugar, os snipers têm a função gravada nas camisolas, a segurança civil envolve-o nas multidões, há muitos camuflados na comitiva, e, a cada hora, alguém recebe um SMS alertando para movimentações suspeitas ou um novo rumor para eliminar o ex-Presidente, na próxima estação. No outro lado da barricada, o presidente da Fretilin, Lu Olo, afirma em comunicado que há um plano para matar o secretário-geral deste partido, Mari Alkatiri. Nos dias de brasa, durante a crise, lá vinha o Timor místico pedir ao ex-primeiro-ministro que aceitasse a injecção de uma substância de uma raiz que o tornaria imune às balas. Mas o político, cerebral, nunca deixou que lhe tocassem nas veias. Cruzam-se as ameaças de morte, dando corda ao boato. No país, tem força de instituição. Em Railaco (Ermera), suspeita-se da presença de um homem armado entre os populares que assistem ao comício do CNRT. Xanana não se deixa impressionar. Afinal, enquanto foi guerrilheiro, teve sempre a cabeça a prémio. Terminado o evento, força o regresso ao palco para enfrentar uma ameaça invisível: «Não tenho medo!» - tão mortal como terminar um bife de búfalo e improvisar um palito de uma folha de palmeira, aos olhos do povo. Eis Xanana, o carismático - fita os eleitores, passa em revista a luta de libertação, os cinco anos de independência, os amanhãs que ainda não cantaram. Plano de desenvolvimento, auditoria aos rendimentos dos políticos, pensões para os veteranos - sempre eles -, justiça para todos «e não apenas para os do partido», saúde também, educação, muita. Olha para as cores do logo do partido: «CNT, cor de ouro, R, cor do crude» O dinheiro do petróleo, afirma, é para investir já: «Guardar até quando?» Promessas, promessas, nunca menos de meia-hora de oratória, às vezes o dobro, e a assistência vidrada. Um ou outro entra em transe. Também há sempre uns fanáticos, ou quem bebeu demais? No final, descola o «Se'e se'e los» («Quem, quem é?«), uma das canções mais populares da ilha, que coloca a salvação do povo nos «jovens de Timor«. Deve ser verdade, mas a geração da Resistência ainda não se calou e continua a encher campos de futebol: «Isto está no papo», comenta um dirigente da Fretilin Mudança.
Fretilin contra todos
Com uma população maioritariamente analfabeta, os números fazem a diferença. Mal o CNRT foi sorteado na segunda posição nos boletins de voto, nasceu logo o slogan: «Vota ba rua« (vota no segundo). Na caravana, cruzando as estradas lunares de Timor-Leste, o povo saúda o candidato com dois dedos, que também são de vitória. Tão estranho, diz Xanana, passar por uma casa decrépita e ver um retrato seu numa parede. «Como se fosse um santo?» Tanta gente fez dinheiro nos mercados, transaccionado imagens do guerrilheiro, após 1999, quando já se podiam exibir esse tipo de símbolos: «Se alguém ganhou dinheiro com isso, até fico feliz?« Mas entretanto emergiram outras forças e o país dividiu-se noutras representações? a própria resistência separou-se. E, em 30 de Junho, concorrem às legislativas 14 partidos. Vão a votos o Undertim (de L7, outro ex-guerrilheiro), o Partido Democrata Cristão, embora a Igreja apoie o Partido de Unidade Nacional (do padre Filomeno Jacó), o Partido Democrata (de La Sama, ex-líder da resistência dos estudantes, que quase venceu Ramos-Horta na primeira volta das presidenciais), a Associação Social Democrata Timorense (de Xavier do Amaral, ex-presidente da Fretilin) em coligação com o Partido Social Democrata (de Mário Carrascalão), a histórica UDT (de João, outro Carrascalão) ? um monárquico (Jacó Xavier) que se julga descendente da coroa timorense e? portuguesa; republicanos e nacionalistas com residência em Lisboa? E a Fretilin sempre só e sempre a acreditar que ganha. A última cartada do partido no poder foi a promessa da transferência de 25 mil a 100 mil dólares anuais do Governo para cada suco (freguesia), num contrato a assinar com o presidente do partido, Lu Olo. Há mais de 400 sucos em Timor e o orçamento de Estado é de cerca de 360 milhões de dólares. Também nestas hostes a confiança abunda. Um dia depois de o CNRT ter composto o estádio de Díli, a Fretilin respondeu, quarta-feira, 27, com mais gente ainda - embora tenha recorrido a umas dezenas de camiões para transportar apoiantes da ponta leste da ilha. Foi perante uma multidão ondulante que Mari Alkatiri pediu a maioria absoluta. Se os resultados da primeira volta das presidenciais servirem de guia para a eleição que se avizinha, o partido de Alkatiri e Lu Olo vence. Mas é provável que Xanana valha mais votos do que Ramos-Horta, actual Presidente, e que a dinâmica do CNRT, empurrada pela Fretilin Mudança, equilibre o jogo. Mesmo que alcance a maioria simples, o partido no poder arrisca-se a receber um país ingovernável, porque o Parlamento ficaria controlado pelos movimentos rivais. Nesse cenário, Alkatiri admite passar para a oposição, embora deixe no ar a hipótese de uma coligação. Gusmão, La Sama, Carrascalão (Mário) - os três líderes dos maiores partidos de oposição não têm feito segredo de que partem separados nas eleições e de que estão juntos depois delas. Em Maubara, o presidente do CNRT irrompeu por um comício do PD que estava a decorrer. Aceitou o tais e tabaco de enrolar e, acabou por se «apoderar» do evento, discursando para os democratas que, por fim, o aclamaram: «Viva Xanana» Há alianças menos subtis? Mas, num momento em que Díli fervilha em negociações políticas, para que lado cairá na verdade La Sama se ele for o fiel da balança?
No ninho do comandante
Entre discursos, Xanana nunca passa despercebido. Tem sempre uma piada fisgada: «Esta mar não tem buracos, aqui não posso dizer mal do Governo?«, afirma para a tripulação indonésia do Nakroma, o ferry que liga, em dez horas de viagem, Díli a Oecusse. Na mesma embarcação, os passageiros estrangeiros espantam-se ao vê-lo a tagarelar, bem-disposto, com o irmão de Alkatiri, um homem que o CNRT acusa de ser beneficiário da «corrupção do Governo«, e que, por coincidência - mais uma -, seguia a bordo no trajecto final (ilha de Ataúro-Díli). O país é uma aldeia. É preciso transportar uma criança que ardia em febre no Nakroma e, atracado o navio, liga-se para o número de emergência. Mas ninguém atende. Telefona-se para o director do hospital e este não está. Alguém tem o número privado do motorista de uma ambulância e esta aparece, num ápice, nas instalações portuárias da capital, onde um frenético Xanana comanda a operação de transporte do doente. Logo depois, ele já está a partilhar com observadores estrangeiros, destacados pela União Europeia para acompanhar estas legislativas, o seu optimismo quanto ao resultado eleitoral, e, finda a conversa, à frente dos malay (estrangeiros) e do seu povo, ajuda um homem a puxar pela trela um porco renitente a embarcar para a viagem seguinte. Só os guinchos do suíno abafam a risada geral. Eis um Xanana que Nito e Zenilda Gusmão, filhos do primeiro casamento, só conheceram já adultos. Privados, no crescimento, da presença do pai, eles seguem agora a maioria dos seus passos na corrida para o Governo. A actual mulher, Kirsty Sword, e os três meninos (Alexandre, Kay Olo e Daniel) estiveram na Austrália estes dias todos. Manuel (Anô), o oitavo de dez irmãos, também é presença assídua na campanha, recordando os tempos da meninice em que a «generosidade» do mano José Alexandre (que mudou oficialmente o nome para Kay Rala Xanana Gusmão) distribuía os dividendos do jogo Monopólio pelos vencidos: «Ele foi sempre um conciliador» Numa pausa na campanha, a família junta-se em Balibar para celebrar os 61 anos do candidato (em 20 de Junho). É convidada uma imensa maioria de companheiros da luta, além do séquito da caravana partidária. A Fretilin Mudança está lá em peso, Railós também - e Ramos-Horta, membros do corpo diplomático e empresários estrangeiros, mais o inevitável Anito Matos, que vai animar esta reunião de umas 300 pessoas. Xanana é o herói da festa, sempre ligado à corrente, sempre a falar, distribuindo comes e bebes, com a piada seguinte na ponta da língua e a paciência para mais uma fotografia. É ele o show e os comensais simplesmente adoram-no. O lar dos Gusmão foi erguido em terrenos de Abílio Osório Soares (ex-governador, pró-indonésio, de Timor, falecido em vésperas desta festa de aniversário). Eram rivais mas negociaram a transacção sem dramas. Mesmo a calhar para quem não tinha dinheiro para comprar uma propriedade aos especuladores imobiliários do centro de Díli. Nesta casa dormiu Jorge Sampaio, apenas umas horas, na noite da independência timorense. Segundo explica Xanana, as poupanças da família, incluindo um prémio em dinheiro da Unesco, foram estoiradas em dádivas a pessoas pobres e nas despesas da Presidência que o Governo se recusou pagar (um diferendo no valor de 28 mil dólares, que se tornou num caso sério da política timorense). Fora destas guerras, Kirsty Sword abriu uma conta bancária em seu nome e dos meninos e o chefe do clã está proibido de lhe deitar a mão. «Talvez assim se consiga pagar a casa?», brinca. A residência está situada a meia encosta das montanhas que cercam a cidade e é servida por cinco fontes de água, que alimentam cedros, ciprestes, muita relva, flores por todo o lado, com destaque para uma: a rosa porcelana. Tem ainda um campo de básquete, que serve de sede ao seu Sport Laulara e Benfica. Vive a uma cota que o mantém longe da realidade precária da capital e seus podres - os tiros nocturnos e os arraiais de pancadaria nos bairros problemáticos, os deslocados que dormem em tendas no centro da cidade - e até acima dos blackhawks australianos que vigiam os céus, como se estivéssemos em 1999 novamente. Na festa, em surdina, comentam-se os propósitos eleitorais de Xanana. «Para um guerrilheiro sobreviver não basta comida, água e balas, é preciso também amar o povo e ser amado por ele», comenta José Luís Guterres, da Fretilin Mudança. «Esse é o amor que o faz correr de novo e rejuvenescer o homem do mato» É o segundo tempo da Resistência. A conclusão é unânime: «O guerrilheiro voltou»
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in Revista VISÃO nº 747 - 28 Junho 2007
Passaram-se cinco anos sobre a independência e o povo continua miserável, as infra-estruturas não se vêem, as estradas mantêm-se esburacadas, há 20 mil deslocados internos, o investimento privado é pouco mais do que nulo, o país está de novo «ocupado» por militares internacionais, em resultado de uma crise política - entre o Governo Fretilin e o Presidente Xanana -, apimentada por 600 homens que desertaram das forças armadas em protesto contra o Executivo: os peticionários. A violência saiu outra vez à rua e o sangue voltou a correr. O tempo congelou na meia-ilha tropical. As legislativas, de 30 de Junho podem marcar o momento que separa um estado viável e um estado falhado. Jogam-se também nas urnas 20 anos de atritos entre o comandante guerrilheiro e o partido que esteve historicamente associado à resistência. Na ressaca da crise, o Presidente que não o queria ser achou que tinha de voltar ao comando do povo, num lugar em que pudesse, efectivamente, mandar: «Dantes, pedi às pessoas sacrifícios, agora vou tomar conta delas», afirmou numa entrevista exclusiva, publicada na última edição da VISÃO (disponível integralmente na página online da revista). As cadeiras dançaram. O independente Ramos-Horta, que chefiou o Governo, em substituição de Mari Alkatiri, no segundo Governo Constitucional (em cinco anos, já houve três), transitou para o Palácio das Cinzas (Presidência). E o ex-chefe de Estado corre pelo poder executivo - o guerrilheiro despertou. Maliana, capital do distrito de Bobonaro: numa sala branca, Xanana senta-se numa cadeira de plástico, aquecendo a voz para o comício que não tarda. Está lá Mahuno, o comandante das Falintil (braço armado da resistência), que sucedeu a Xanana, após a sua prisão em 1992, e que foi também capturado nos meses seguintes. Apesar de um AVC, que lhe afecta a fala e a coordenação motora, ocupa um dos lugares cimeiros da lista do CNRT. Estão lá Bissoi e Bilou, duas guerrilheiras que fizeram o pleno de 24 anos na montanha. Veteranos do mato ou actores da duplicidade timorense - trabalhando com o inimigo, atraiçoando-o pelas costas - e activistas na diáspora. Cada rosto, um passado, cada passado uma matriz comum: a resistência de novo, às ordens do seu comandante: o maun bo'ot (irmão maior). «Temos gente da luta armada, da rede clandestina, da frente diplomática (os três ramos da Resistência), só podemos ganhar», afirma um apoiante. «A não ser que matem o katuas (velhote venerável)» Onde a esperança média de vida é de 55 anos, não se estranha o tratamento? Está lá ainda a Fretilin-Mudança, com a sua legião de ex-governantes, que disputa a liderança do partido contra Mari Alkatiri e que, nestas eleições, se enfiou debaixo do guarda-chuva do CNRT, afrontando «os abusos de poder« do Governo: «Num país pós-conflito teria sido importante incluir a oposição», afirma o coordenador desta facção partidária e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, José Luís Guterres. «Mas [o Executivo] não ouviu ninguém, não conseguiu resolver a crise das forças de defesa e por causa disso teve de chamar tropas estrangeiras, pondo em causa a própria soberania nacional» Este grupo acredita que, depois de a Fretilin ter perdido quase 30% de votos, entre as legislativas de 2001 e a primeira volta das presidenciais, há um mês e meio, será responsável por um autêntico desastre nas próximas legislativas, altura em que fará o cerco final à liderança de Alkatiri. Quanto a Xanana, o motor auxiliar desta luta interna, exibe um optimismo em crescendo: «Não espero menos do que 51 por cento»
O presságio do galo coxo
O comandante que voltou a sê-lo nunca perdeu certas rotinas adquiridas no mato. Ainda o sol não se levantou e Xanana já está a pé. Poucas horas atrás, teve de esclarecer, naquela quintal de Maubara, uma mulher que pretendia saber se ele só queria os votos do povo. Bebe um café e fuma o primeiro cigarro, que lhe agrava a tosse. Toma um xarope e um rebuçado para a voz, que enfraquece a cada dia, e, à medida que os colegas de partido se levantam, começa o recital de histórias. Mahuno ri como um pirata. Na longa jornada de campanha, que começou no fim de Maio, na ponta Leste, Xanana vai dormindo em casas de apoiantes, tão pobres como pobre é Timor, humildes mas sempre dignas nas suas paredes de cores sumidas, sofás coçados e mobiliário velho. A electricidade vai falhando, a água acumula-se em recipientes baços, o banho toma-se com uma concha pela cabeça abaixo. Ninguém se queixa - são veteranos, acostumaram-se a muito pior. Acompanhar Xanana em campanha é também mergulhar nas profundezas de Timor-Leste. Antes de cada comício, o candidato é vestido com preparos tradicionais, dando um significado visual ao «liurai dos liurais« (régulos). À chegada a cada localidade, os anciãos cantam o hamulak, um ritual de boas-vindas para os notáveis, e uma criança envolve o seu pescoço com um tais (pano timorense). Estão sempre presentes os lianain, os velhos que comunicam com os espíritos, e toda a sorte de coreografias: meninas ululantes em Pune, em Oecusse-Ambeno, dançarinos que chocalham trajes em moedas centenárias, em Pasabe, no mesmo distrito, cânticos ancestrais em Ataúro. Tapetes de flores, efeitos em palapa - orgias de cor. Nitibe, ainda em Oecusse, Xanana discursa para uma multidão de camponeses, na alta montanha que perfila os confins do enclave. Um gondoeiro abriga todo o comício e os políticos acomodam-se sobre as raízes desta árvore colossal. A copa é tão frondosa que ensombra toda a assistência. No tronco, há caveiras de animais abatidos em rituais de sacrifício, cujo sangue tingiu de vermelho as pedras na base. Este é o Timor místico que não se revela apenas nas terras do fim do mundo. Ele também influencia campanhas e testa a racionalidade das elites. Na crise de há um ano, reuniões em baixa voz eram conduzidas por um toké (um lagarto cantante). Se ele cantava, era a confirmação de uma boa ideia. Se ficava mudo, mudava-se a estratégia. «Que país é este, entregue à voz de um toké?«, questionava um actual apoiante do CNRT, que não quer aparecer como alguém metido em crenças no tempo dos seus avós. Em Laleia, terra natal do ex-guerrilheiro, um galo velho e coxo desceu a montanha depois de prolongada ausência: bom presságio. Alguns dos seus inimigos, diz o mesmo apoiante, acreditam que os espíritos dos antepassados confiaram em Xanana a missão de guiar o povo: «Isso mete-lhes medo, muito medo».
O sonho que vai de foguetão
Em palanques improvisados, nos alpendres dos mercados ou sob telas do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, Xanana projecta a voz e o carisma. O CNRT pôs a logística a funcionar e camiões a transportar gente em todos os distritos. As crianças descalças ocupam as primeiras linhas, os rapazes efusivos estão na segunda, junto de velhos que queimam as gengivas com a bua (fruto de palmeira mascado com cal). Xanana e Mahuno também a provam. O material de campanha compõe o espaço e a mensagem - faixas representando o guerrilheiro e o estadista; cartazes futuristas, partilhando o sonho na forma de estruturas aeroportuárias, arranha-céus ou o delírio criativo (que não terá passado no crivo do chefe), de caças de combate e foguetões. O culto do homem está em toda a parte. Mas Xanana está noutra. Em palco, possui uma energia diabólica. Irrequieto, transmite em tétum a ira contra o Executivo da Fretilin. Imita os ministros, cobrindo-os de ridículo, ressona para ilustrar a ineficiência dos deputados, finge que enche um balão para falar de um poder que «enche, enche, enche e, depois? bum! «Está imparável: «Se o Governo não desenvolve, sai!!!! Não serve o povo, sai! É corrupto, sai!» A assistência, em cada canto do país, concorda em uníssono: «Sai!» A sequência do «sai!», proferida num grito de revolta, incendeia qualquer público. Nunca falha. Excepto em Oecusse, por causa de uma traição linguística. No dialecto local (vaiqueno), sair diz-se «poe». Parece «põe». O orador pensa que o homem que faz a tradução está a sabotar o discurso. Até que, desfeito o mal-entendido, se desfaz em riso e remata, triunfal: «O Governo não faz nada, poe!» Uma coincidência tão tramada como ali perto existir uma terra com o nome de Xanane. Entre o festival Xanana, a lavagem de roupa suja da Fretilin contra a «Fretilin radical», sobra ainda Anito Matos, humorista e cantor, que faz Timor rir há mais de 20 anos e aquece os corações com as suas baladas românticas ou canções populares. Em campanha, ele põe o povo a dançar, embalado pelos acordes pesados da banda de punkrock Smith Brothers, de Lahane. O artista está orgulhoso: «Esta gente não tem muito com que se divertir» Em Pune, a farra estende-se até ao raiar do sol, com muita música e tuasabo (aguardente) derramado. Mas Xanana prefere trocar impressões com veteranos da rede clandestina.
'Está no papo'
Xanana, «o Deus vivo», católico - não há comício nem ataque ao almoço que não seja precedido por uma oração - é também um mortal. Há muito poder de fogo à solta em Timor, e o polémico Railós (o homem que denunciou a recepção de armas fornecidas pelo Governo para eliminar adversários políticos) lembra isso mesmo nas iniciativas do partido em Liquiçá. A polícia, com espingardas automáticas, segue o candidato para cada lugar, os snipers têm a função gravada nas camisolas, a segurança civil envolve-o nas multidões, há muitos camuflados na comitiva, e, a cada hora, alguém recebe um SMS alertando para movimentações suspeitas ou um novo rumor para eliminar o ex-Presidente, na próxima estação. No outro lado da barricada, o presidente da Fretilin, Lu Olo, afirma em comunicado que há um plano para matar o secretário-geral deste partido, Mari Alkatiri. Nos dias de brasa, durante a crise, lá vinha o Timor místico pedir ao ex-primeiro-ministro que aceitasse a injecção de uma substância de uma raiz que o tornaria imune às balas. Mas o político, cerebral, nunca deixou que lhe tocassem nas veias. Cruzam-se as ameaças de morte, dando corda ao boato. No país, tem força de instituição. Em Railaco (Ermera), suspeita-se da presença de um homem armado entre os populares que assistem ao comício do CNRT. Xanana não se deixa impressionar. Afinal, enquanto foi guerrilheiro, teve sempre a cabeça a prémio. Terminado o evento, força o regresso ao palco para enfrentar uma ameaça invisível: «Não tenho medo!» - tão mortal como terminar um bife de búfalo e improvisar um palito de uma folha de palmeira, aos olhos do povo. Eis Xanana, o carismático - fita os eleitores, passa em revista a luta de libertação, os cinco anos de independência, os amanhãs que ainda não cantaram. Plano de desenvolvimento, auditoria aos rendimentos dos políticos, pensões para os veteranos - sempre eles -, justiça para todos «e não apenas para os do partido», saúde também, educação, muita. Olha para as cores do logo do partido: «CNT, cor de ouro, R, cor do crude» O dinheiro do petróleo, afirma, é para investir já: «Guardar até quando?» Promessas, promessas, nunca menos de meia-hora de oratória, às vezes o dobro, e a assistência vidrada. Um ou outro entra em transe. Também há sempre uns fanáticos, ou quem bebeu demais? No final, descola o «Se'e se'e los» («Quem, quem é?«), uma das canções mais populares da ilha, que coloca a salvação do povo nos «jovens de Timor«. Deve ser verdade, mas a geração da Resistência ainda não se calou e continua a encher campos de futebol: «Isto está no papo», comenta um dirigente da Fretilin Mudança.
Fretilin contra todos
Com uma população maioritariamente analfabeta, os números fazem a diferença. Mal o CNRT foi sorteado na segunda posição nos boletins de voto, nasceu logo o slogan: «Vota ba rua« (vota no segundo). Na caravana, cruzando as estradas lunares de Timor-Leste, o povo saúda o candidato com dois dedos, que também são de vitória. Tão estranho, diz Xanana, passar por uma casa decrépita e ver um retrato seu numa parede. «Como se fosse um santo?» Tanta gente fez dinheiro nos mercados, transaccionado imagens do guerrilheiro, após 1999, quando já se podiam exibir esse tipo de símbolos: «Se alguém ganhou dinheiro com isso, até fico feliz?« Mas entretanto emergiram outras forças e o país dividiu-se noutras representações? a própria resistência separou-se. E, em 30 de Junho, concorrem às legislativas 14 partidos. Vão a votos o Undertim (de L7, outro ex-guerrilheiro), o Partido Democrata Cristão, embora a Igreja apoie o Partido de Unidade Nacional (do padre Filomeno Jacó), o Partido Democrata (de La Sama, ex-líder da resistência dos estudantes, que quase venceu Ramos-Horta na primeira volta das presidenciais), a Associação Social Democrata Timorense (de Xavier do Amaral, ex-presidente da Fretilin) em coligação com o Partido Social Democrata (de Mário Carrascalão), a histórica UDT (de João, outro Carrascalão) ? um monárquico (Jacó Xavier) que se julga descendente da coroa timorense e? portuguesa; republicanos e nacionalistas com residência em Lisboa? E a Fretilin sempre só e sempre a acreditar que ganha. A última cartada do partido no poder foi a promessa da transferência de 25 mil a 100 mil dólares anuais do Governo para cada suco (freguesia), num contrato a assinar com o presidente do partido, Lu Olo. Há mais de 400 sucos em Timor e o orçamento de Estado é de cerca de 360 milhões de dólares. Também nestas hostes a confiança abunda. Um dia depois de o CNRT ter composto o estádio de Díli, a Fretilin respondeu, quarta-feira, 27, com mais gente ainda - embora tenha recorrido a umas dezenas de camiões para transportar apoiantes da ponta leste da ilha. Foi perante uma multidão ondulante que Mari Alkatiri pediu a maioria absoluta. Se os resultados da primeira volta das presidenciais servirem de guia para a eleição que se avizinha, o partido de Alkatiri e Lu Olo vence. Mas é provável que Xanana valha mais votos do que Ramos-Horta, actual Presidente, e que a dinâmica do CNRT, empurrada pela Fretilin Mudança, equilibre o jogo. Mesmo que alcance a maioria simples, o partido no poder arrisca-se a receber um país ingovernável, porque o Parlamento ficaria controlado pelos movimentos rivais. Nesse cenário, Alkatiri admite passar para a oposição, embora deixe no ar a hipótese de uma coligação. Gusmão, La Sama, Carrascalão (Mário) - os três líderes dos maiores partidos de oposição não têm feito segredo de que partem separados nas eleições e de que estão juntos depois delas. Em Maubara, o presidente do CNRT irrompeu por um comício do PD que estava a decorrer. Aceitou o tais e tabaco de enrolar e, acabou por se «apoderar» do evento, discursando para os democratas que, por fim, o aclamaram: «Viva Xanana» Há alianças menos subtis? Mas, num momento em que Díli fervilha em negociações políticas, para que lado cairá na verdade La Sama se ele for o fiel da balança?
No ninho do comandante
Entre discursos, Xanana nunca passa despercebido. Tem sempre uma piada fisgada: «Esta mar não tem buracos, aqui não posso dizer mal do Governo?«, afirma para a tripulação indonésia do Nakroma, o ferry que liga, em dez horas de viagem, Díli a Oecusse. Na mesma embarcação, os passageiros estrangeiros espantam-se ao vê-lo a tagarelar, bem-disposto, com o irmão de Alkatiri, um homem que o CNRT acusa de ser beneficiário da «corrupção do Governo«, e que, por coincidência - mais uma -, seguia a bordo no trajecto final (ilha de Ataúro-Díli). O país é uma aldeia. É preciso transportar uma criança que ardia em febre no Nakroma e, atracado o navio, liga-se para o número de emergência. Mas ninguém atende. Telefona-se para o director do hospital e este não está. Alguém tem o número privado do motorista de uma ambulância e esta aparece, num ápice, nas instalações portuárias da capital, onde um frenético Xanana comanda a operação de transporte do doente. Logo depois, ele já está a partilhar com observadores estrangeiros, destacados pela União Europeia para acompanhar estas legislativas, o seu optimismo quanto ao resultado eleitoral, e, finda a conversa, à frente dos malay (estrangeiros) e do seu povo, ajuda um homem a puxar pela trela um porco renitente a embarcar para a viagem seguinte. Só os guinchos do suíno abafam a risada geral. Eis um Xanana que Nito e Zenilda Gusmão, filhos do primeiro casamento, só conheceram já adultos. Privados, no crescimento, da presença do pai, eles seguem agora a maioria dos seus passos na corrida para o Governo. A actual mulher, Kirsty Sword, e os três meninos (Alexandre, Kay Olo e Daniel) estiveram na Austrália estes dias todos. Manuel (Anô), o oitavo de dez irmãos, também é presença assídua na campanha, recordando os tempos da meninice em que a «generosidade» do mano José Alexandre (que mudou oficialmente o nome para Kay Rala Xanana Gusmão) distribuía os dividendos do jogo Monopólio pelos vencidos: «Ele foi sempre um conciliador» Numa pausa na campanha, a família junta-se em Balibar para celebrar os 61 anos do candidato (em 20 de Junho). É convidada uma imensa maioria de companheiros da luta, além do séquito da caravana partidária. A Fretilin Mudança está lá em peso, Railós também - e Ramos-Horta, membros do corpo diplomático e empresários estrangeiros, mais o inevitável Anito Matos, que vai animar esta reunião de umas 300 pessoas. Xanana é o herói da festa, sempre ligado à corrente, sempre a falar, distribuindo comes e bebes, com a piada seguinte na ponta da língua e a paciência para mais uma fotografia. É ele o show e os comensais simplesmente adoram-no. O lar dos Gusmão foi erguido em terrenos de Abílio Osório Soares (ex-governador, pró-indonésio, de Timor, falecido em vésperas desta festa de aniversário). Eram rivais mas negociaram a transacção sem dramas. Mesmo a calhar para quem não tinha dinheiro para comprar uma propriedade aos especuladores imobiliários do centro de Díli. Nesta casa dormiu Jorge Sampaio, apenas umas horas, na noite da independência timorense. Segundo explica Xanana, as poupanças da família, incluindo um prémio em dinheiro da Unesco, foram estoiradas em dádivas a pessoas pobres e nas despesas da Presidência que o Governo se recusou pagar (um diferendo no valor de 28 mil dólares, que se tornou num caso sério da política timorense). Fora destas guerras, Kirsty Sword abriu uma conta bancária em seu nome e dos meninos e o chefe do clã está proibido de lhe deitar a mão. «Talvez assim se consiga pagar a casa?», brinca. A residência está situada a meia encosta das montanhas que cercam a cidade e é servida por cinco fontes de água, que alimentam cedros, ciprestes, muita relva, flores por todo o lado, com destaque para uma: a rosa porcelana. Tem ainda um campo de básquete, que serve de sede ao seu Sport Laulara e Benfica. Vive a uma cota que o mantém longe da realidade precária da capital e seus podres - os tiros nocturnos e os arraiais de pancadaria nos bairros problemáticos, os deslocados que dormem em tendas no centro da cidade - e até acima dos blackhawks australianos que vigiam os céus, como se estivéssemos em 1999 novamente. Na festa, em surdina, comentam-se os propósitos eleitorais de Xanana. «Para um guerrilheiro sobreviver não basta comida, água e balas, é preciso também amar o povo e ser amado por ele», comenta José Luís Guterres, da Fretilin Mudança. «Esse é o amor que o faz correr de novo e rejuvenescer o homem do mato» É o segundo tempo da Resistência. A conclusão é unânime: «O guerrilheiro voltou»
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in Revista VISÃO nº 747 - 28 Junho 2007